
série animais - corvo
desenho a lápis
100x70cm
2018
-
Animais
O desenho pode ser um modo de conhecer o mundo e o que que há nele. Um modo específico de investigar a relação entre experiência e sensação e, principalmente, de mostrá-la por meio de imagem. O desenho também pode ser um meio de suspender o juízo, ao exigir-nos atenção àquilo que nos chega pelos olhos. Nesta ordem particular pode ser situada a série “Animais” apresentada por Mariana Coggiola. Os desenhos parecem deslocar-se de uma articulação formal do mundo, dada pela linguagem verbal, em particular àquela que responde ao enredo: os animais num tempo suspenso, num espaço sem fundo, comunicando apenas as suas expressões e formas para o desenho, como evidência do agora, do presente-realidade.
Dito isto, pode-se propor uma pergunta para abrir esta reflexão: por que testemunhar uma determinada ação de um animal irracional nos causa tantas sensações? Calcada em pesquisas acerca da expressão dos animais e da ciência etológica, a série “Animais” parte do longo interesse da artista em relação à expressão animal, a etologia – ciência que se ocupa da expressão animal – e da comunicação interespécies. As imagens buscam trazer à tona uma reflexão acerca da complexidade psíquico-emocional dos animais e das relações possíveis entre esta complexidade e as respostas emocionais da espécie humana. A etologia, ciência recentemente recuperada com novo fôlego e retomada dos estudos darwinianos sobre a evolução das espécies, se dedica no século XXI a um novo paradigma: a precisa distinção científica entre a sensação animal e a humana. De maneira geral, estes estudos buscam lançar luz sobre os pontos de convergência entre a resposta comportamental de homens e animais, aproximando os dois grupos e trazendo novos e relevantes pontos para a discussão dos direitos das espécies. É possível identificar na sociedade contemporânea uma preocupação mais pronunciada em relação à proteção dos direitos dos animais – tema de pouca ou nenhuma serventia para a sociedade de progressismo industrial do séc. XX - , através dos estudos de altruísmo animal, autoconsciência animal, etologia comparada e psicologia animal, cujos resultados apontam que conjuntos de ações praticadas por animais não podem mais ser reduzidos meramente aos instintos de fuga e sobrevivência. Esta recém-descoberta semelhança psíquica entre homens e animais irracionais – que compreende a identificação de conceitos complexos como senso de justiça, luto, saudades e ressentimento – aponta para uma nova relação a ser construída entre homens e animais a partir do presente e até mesmo para a própria redescoberta dos animais como os conhecemos. A popularização do vegetarianismo e veganismo são sintomas dessa tomada coletiva de consciência, bem como a proliferação de movimentos de preservação e bem-estar animal dentro das pautas políticas do séc. XXI.
Não por acaso, a escolha do tema dos desenhos de Mariana Coggiola – o comportamento animal – é a busca pelo termo mais basal: as sensações sem redenção de linguagem. Essa sensação se transporta no gesto do lápis sobre o papel e na visualidade clara e translúcida. O desenho busca ser própria coisa, a própria matéria, a existência inegável, a presença sussurrante de um ente, ainda que residual e bidimensional. A série “Animais” busca colocar o conhecimento do desenho em função da descrição de um corpo natural, que se coloca diante de nós como experiência alterna de uma existência sem enredo. A figuração do animal não se faz pelo enredo que se conta, mas pela imagem que é índice de uma presença que perturba: como sentimos identificação e empatia pelo comportamento de um animal desprovido de linguagem?
O desenho se apresenta aqui como um exercício rudimentar para compreender a realidade por meio de outra racionalidade, sob uma prática mais maleável na articulação do binômio experiência-sensação. Este estado suscita um dos problemas centrais do conhecer e que pode ser estendido às artes em geral: ver não é conhecer. Conhecer a relação entre homens e animais é prostrar-se diante da expressão vivaz para ver e ouvir, assumindo que a observação e a mimese são a mãe e o pai do conhecimento. A artista acredita que as ciências humanas só tocaram a superfície do conhecimento da mente animal e que a observação cautelosa das formas naturais dos bichos revela muito sobre o trato que desenvolvemos com a nossa própria espécie. “Animais” é o emprego da linguagem do desenho na tentativa de compreender estas relações, tão difíceis quanto naturais e inatas. E este exercício pode exigir de nós uma aproximação um pouco mais primitiva, um pouco mais instintiva.
André Fernandes e Mariana Coggiola