Utopias Piratas

H4wnee

Never let your sense of morals prevent you from doing what is right.

Isaac Asimov - 
Foundation, 1951

The word “computer” sounds backward and dumb.

David Cronenberg  - Cosmopolis, 2004

Virtualidade e realidade encontram seu ponto de fusão no conjunto de obras apresentado em Utopias Piratas, primeira exposição individual do jovem artista paraibano H4wnee. Sob a lógica do mash-up, do remix e da sobreposição, pinturas e objetos compostos de refugo tecnológico e sucataria ganham vida e narram a distopia contemporânea como tragicomédia sagrada. Ao aludir aos mais diversos universos que coexistem no tempo presente, Hawnee nos convida a refletir sobre sistemas: sociais, artísticos, institucionais, financeiros, religiosos, computacionais e tecnológicos.

A utopia de Hawnee diz respeito à valorização de um conjunto de saberes próprios da estética da gambiarra e da escola da acessibilidade – um sistema de valores que enaltece os conhecimentos empíricos daqueles que ainda têm a necessidade com a mãe da invenção. Neste conjunto, a tela azul não representa um erro fatal do sistema, mas sim um ponto de conexão entre diferentes mundos visíveis, virtuais ou tangíveis. Por meio de representações de ícones da geração Z e de uma grande compilação de personagens subversivos, a produção (compulsiva e nervosa) de Hawnee revela ficções sempre aquém da realidade: em sua obra pictórica vilões e bons moços dançam juntos e não há guarda-chuva moral amplo o suficiente para proteger a todos, e, na condição de observadores, proteger a nós mesmos da evidente fragilidade de nossos próprios sistemas íntimos. Já não há distinção possível entre quem se vilaniza e quem se canoniza e no horizonte assistimos à deriva aos barcos dos piratas – não mais apenas saqueadores de bens, mas agora antropófagos, artistas e civis.

    Saturada de referências que abrangem desde o barroco brasileiro até o overprocessing do deep dream, a obra de H4wnee atravessa o espaço-tempo como uma faca afiada e precisa. Paisagens de tradição romântica e palette de minecraft coabitam a galeria com retratos ovais e esculturas em miniatura que remetem à produção de meados do séc. XIX. Citações ao maneirismo, à ícones medievais, ao kitsch, ao hacking e a cyberart são apenas algumas das muitas trilhas de pegadas que H4wnee nos convida a seguir, sem garantia nenhuma de um destino aconchegante e confortável. Aqui, o jogo de transposição da existência virtual para o mundo real e vice-versa parece ser a única jornada viável – e de maior importância do que qualquer porto (ou sistema) seguro de chegada.

    Na dicotomia entre o hipertecnológico e o bucólico é possível vislumbrar o contexto no qual a exposição foi concebida e produzida. O conjunto de obras, elaboradas em sua maioria em situação de “residência itinerante” entre a cidade natal do artista, João Pessoa, e o espaço da Nós Galeria em São Paulo, fala também das relações entre local, global e identidade regional. Qual é a cidadania estética e afetiva de quem habita o virtual e é nascido no tempo do glocal? Que tipo de arte é produzida quando consideramos a imensa força do vetor de desglobalização presente na expressão contemporânea? Se a indeterminação identitária é o que fortalece o vínculo que cyberartistas criaram e mantém nos dias de hoje, manifesto na forma de uma comunidade virtual tão orgulhosamente punk quanto apátrida, a obra de Hawnee, por sua vez, coexiste com essa realidade sem abandonar suas raízes. A presença da iconografia latina com ecos de tradição nordestina permeia toda a extensão de sua produção, onde letreiros de beira de estrada e brinquedos falsificados convivem com imagens católicas em gesso e pequenos bonecos de animais de pastagem. H4wnee exalta a inteligência coletiva de rede sem se esquecer das sabedorias regionais inerentes à sua própria formação individual, que se deu, em sua maioria, à margem das grandes capitais e polos urbanos brasileiros.

    Pelo contraste de culturais visuais que o conjunto de obras nos oferece, percebemos mais completamente cada um dos muitos mundos contidos no trabalho de H4wnee e, talvez tão importante quanto, percebemos também os mundos contidos fora de seu trabalho. Utopias Piratas nos sugere que fronteiras claras e totais talvez não existam mais desta maneira, que a separação entre mundos antes distantes é hoje um tanto mais confusa e sutil. Sua realidade turbulenta nos informa sobre a liquefação do tempo e dissolução de estruturas. E nesta nota vale avisar que atravessar uma exposição de H4wnee exige fôlego: no percurso nos deparamos com diversas discussões próprias da história da pintura – com acenos à Cabanel, Matisse, Bosch, à pintura pompier, à John Constable e o paisagismo romântico, fauve e explosividade do expressionismo abstrato. Nos deparamos também com vocabulário próprio do universo dos games: glitches, pixels e o interesse declarado tanto pelo software quanto pelo hardware dos jogos e consoles. Quando nos atemos, finalmente, ao ponto de vista particular do artista sobre a figuração contemporânea, o H4wnee nos introduz questões relativas ao sujeito fragmentado, paisagem distópica, ao corpo ciborg, corpo protético e confissões sobre suas próprias angústias e disforias individuais. Tudo isso sob uma lente multifocal que é ora reflexiva, ora satírica – H4wnee é provocateur por excelência e não nos deixa esquecer nunca de sua paixão pelo antidesign, antiart e pós-deboche, que caminha lado a lado à sua erudição no âmbito da cultura pop e neopsicodelia.

    Na obra de H4wnee nada é estático. O universo poético do artista parece se encontrar em constante expansão, em compasso com os próprios limites do campo artístico, que assimilou em 2011, não sem fervoroso debate, o videogame como forma legítima de arte. Por via de uma decisão histórica da Suprema Corte americana, que garantiu à uma produtora de videogames status idêntico ao de proteção de direitos autorais concedido às obras de arte, literatura ou música, o valor cultural e formativo dos videogames foi legitimado - ao menos juridicamente. Ao abrir uma exposição no ano zero da cryptoarte e boom dos NFTs, H4wnee faz a ponte entre a ruptura epistemológica da autonomia da arte – arte que discursa sobre si mesma -, e à jovem linguagem da cryptoarte – a tecnologia, agora, falando sobre si mesma. Sem juízo de valor ou conclusões precipitadas, o artista nos conduz por entre índices essenciais do tempo presente: suas complexidades, méritos e deméritos, sem catastrofismos, anúncios do apocalipse ou caminhos de redenção – mas não sem apontar o dedo ou cutucar feridas quando é devido: “Money is art”, dizem os leiloeiros. Para H4wnee, a contravenção calculada parece ainda conseguir remediar o espectro de desumanização do fazer artístico.

    Ao elogiar a riqueza dos materiais não-convencionais e engenhosidade técnica como produto da escassez, o artista cita ainda procedimentos análogos àqueles da arte povera - movimento cuja prerrogativa era, entre outras, a de reaproximar o fazer artístico da vida prosaica e do dia a dia. H4wnee busca seus materiais em caminhadas pela cidade, observando de perto a dinâmica urbana e suas intricadas tramas e cadeias de relações. Esse processo de busca, que inevitavelmente passa a integrar a poética do trabalho, aproxima o artista da realidade sobre a qual discursa e o coloca em contato com tudo aquilo que compõe sua ópera barroca íntima e supratemporal.

    Sem grandes idealismos, e também sem nenhum conformismo, H4wnee divide pela primeira vez com o público suas intrincadas visões de mundo. Em sua obra labiríntica as únicas dúvidas que não pairam são as de o virtual é, de fato, tão real quanto o real e de que a fé, se resta alguma, se assenta em tudo aquilo que segue ainda irremediavelmente humano.

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