A Mão Reflexiva
gesto e pensamento nas práticas contemporâneas
de 24/10/2020 a 23/12/2020
A diversidade de modos de produção pode ser entendida como pressuposto essencial da arte no contemporâneo. Livre das funções históricas que delimitaram sua prática ao longo do tempo, a expressão artística encontra- se, no século XXI, emancipada das amarras funcionais da ilustração e do didatismo, do formalismo e academicismo, operando para além dos campos da contemplação, pedagogia ou efeito sensível puro. Essa cisão, seguida e precedida por tantas outras, garante ao artista no contemporâneo um estatuto de inédita liberdade: o procedimento artístico hoje pode se valer de amplos repertórios poéticos e técnicos, oriundos das mais diversas experimentações realizadas através da história. Partindo dessa premissa de liberdade, apresentamos aqui uma reunião de obras e artistas que se originam de diversas gerações e contextos, e que dela se valem através de uma multiplicidade de linguagens e veículos expressivos.
Embora singulares em termos do emprego da técnica e discurso, é possível estabelecermos correlações na maneira como os artistas aqui presentes associam seu fazer artístico com a ampla noção de trabalho. Do ponto de vista do procedimento, os oito artistas que compõe a mostra se utilizam de técnicas e metodologias que por vezes tangenciam os universos do design, das artes aplicadas e artes gráficas, da comunicação e até mesmo dos procedimentos industriais, empregando materiais e métodos próprios do universo da construção civil e da tecnologia – como visível no uso do cobre de Niki Nomura, no concreto de Rafael Sanches, nas placas de circuito de H4wnee ou na linguagem cartográfica/arquitetônica de Isabela Etchenique. Essa interdisciplinaridade, que neste conjunto compreende também a retomada de práticas manuais e religiosas, pode revelar e afirmar uma intenção de retomada de diálogo com ideia de função - esta, tão rechaçada por seus antecessores de vanguarda e ao mesmo tempo amplamente recuperada pela pluralidade da produção contemporânea. Na obra de Ana Luísa Araújo é possível perceber que a gestualidade explicita a fatura fundamentalmente manual da obra, seu índice gestual e humano, aparente também nas impressões de Isabela Etchenique, cujo empreendimento físico de gravação na
matriz cobre resulta em impressões que aludem às técnicas ancestrais de reprodução - ambas vinculadas à uma noção clássica de técnica, utilidade e trabalho.
O sociólogo François Vatin identifica que “o conceito de trabalho aparece verdadeiramente no momento em que a mecânica prática e a mecânica racional puderam se juntar (...). Essa junção se opera entre os séculos XVIII e XIX, entre 1780 e 1830, aproximadamente. Ela é contemporânea da revolução industrial e do nascimento da economia política clássica”1. Sendo assim, é possível afirmar que a emergência da revolução industrial traz à tona a questões relativas à divisão do trabalho entre duas frentes distintas: uma que diz respeito à prática mecânica e outra à concepção intelectual de um produto ou obra. É nesse momento que o fazer artístico se vê obrigado a acompanhar as novas organizações do trabalho e se coloca diante de um dilema processual que o acompanhou até tempos recentes: a fragmentação entre conhecimento teórico e conhecimento prático. Ainda que agudizado pela popularização das máquinas e aplicação de técnicas mecânicas no universo do trabalho, o desmembramento do fazer artístico em duas frentes é mais antigo do que o conceito de trabalho pontuado por Vatin. É no medievo que se estabelecem as diferenças essenciais entre as Artes Liberais, praticadas pelo homem livre e Artes Mecânicas, praticadas pelo homem servil2. As artes liberais, baseadas na aquisição de educação erudita, compreendiam o estudo de dois conjuntos de saberes: o Trivium - a gramática, a retórica, a dialética -, e o Quadrivium: a música, a astronomia, a aritimética e a geometria. As artes mecânicas, servis e vulgares, eram consideradas impróprias como atividade para os homens livres. Posto isso, o homem sensível e livre afasta-se da sina e do status do artesão ou do trabalhador manual para dedicar-se à aprendizagem dos conhecimentos teóricos que só a ele eram acessíveis. A busca do artista por se diferenciar do trabalhador subordinado culmina numa separação que conferia ao saber intelectual um alto valor, maior do que aquele atribuído aos saberes técnicos e práticos próprios do trabalhador-artesão.
1 François Vatin. Le Travail. Economie et Physique 1780-1830. Paris, PUF, 1993, p. 9.
2 P. Abelson. As sete artes liberais: um estudo sobre cultura medieval. Kírion: Campinas, 2019
A despeito da nova circunstância de liberdade do artista, a condição subalterna de artesão imprime até hoje um certo tipo de tabu sobre o campo das artes visuais. A prática artística demandou necessariamente, ao longo da história, um ofício manual do artista – o emprego ativo do corpo e das mãos com uma finalidade determinada. Não podendo se furtar à natureza do trabalho, a técnica do artista buscará uma denegação do próprio trabalhar (denegação da subordinação) para afirmar sua condição de liberdade nos tempos modernos. Não à toa esse percurso encontra sua expressão máxima no conceitualismo americano de Joseph Kosuth, que postula a superação da materialidade da obra e edificação de uma categoria de arte unicamente calcada nos artifícios da linguagem e do pensamento abstrato, exclusivos do homem livre. Nesse movimento histórico, o artista, excepcional em oposição ao homem servil, legitima a regra da exploração dos não-excepcionais – nessa concepção, a imensa maioria dos trabalhadores não-artistas, lugar ocupado por aqueles cujo ofício acarreta o emprego ativo do corpo e das mãos, separados, equivocadamente, do pensamento e do conhecimento teórico.
Como produto desse tipo de desenvolvimento histórico, a arte contemporânea é comumente associada, no imaginário comum, à um certo tipo de auto-referencialidade por vezes estéril. O conceitualismo como regra do contemporâneo encontrou sua exaustão nos efeitos perniciosos de um jargão obscurantista que dominou seu território às custas da exclusão das artes ditas populares, aplicadas e decorativas. Ao enaltecer apenas o artista que busca se notabilizar pela excepcionalidade intelectual como forma de escape à subordinação manual, o establishment artístico acaba por aprofundar a subordinação daqueles que considera não-excepcional – a vasta maioria dos artesãos e não-artistas envolvidos no trabalho fabril e mecânico, considerado degradante e produzido fora do contexto de liberdade. O produto disso é a consagração de um meio artístico onde a arte que é produzida por distintos (excepcionais) e para distintos chancela a barbárie contra a maioria trabalhadora, artesã e indistinta, que executa sua produção longe de questionamentos acerca da subjetividade singular de si como artista. Este meio, exausto e anacrônico, é aquilo que opera na contramão da premissa de liberdade investigada pelos oito artistas em exposição.
Em meados do século XIX surge o conceito de art pour l'art – arte pela arte. Como prática, reputava a ideia de que os efeitos sensíveis eram o campo privilegiado do fazer artístico, vinculado de maneira mais firme à noção de contemplação passiva de seus próprios elementos compositivos. Os sentidos permaneciam, portanto, desvinculados da ideia de conhecimento e saber teórico. Incomodado com o princípio da excepcionalidade e da exceção, o crítico de arte John Ruskin – pai do movimento Arts & Crafts perpetuado por William Morris na Inglaterra -, considera que “(...) a arte não é questão de gosto, mas envolve o homem inteiro. No seu fazer ou na sua percepção, imprimimos sobre a arte sentimentos, intelecto, moral, conhecimento, memória e qualquer outra capacidade humana, todas focadas como um raio direcionado a um único ponto. O homem estético é um conceito tão falso e desumanizador quanto o de homem econômico”.3 A preocupação primária das indagações de Ruskin dizia respeito à reassociação da arte com trabalho - e por consequência com a produção de conhecimento. Sua crença se calcava na ideia de que a arte só reinaria plena quando os artesãos se tornarem artistas e os artistas artesãos. O crítico não buscava uma nova conceituação, mas sim o estabelecimento de uma prática onde a arte não se colocava como objeto passivo e o artesão não se reduzia ao papel de técnico/mecânico. Buscando a defesa de que o principal propósito da arte é servir as verdadeiras funções da vida diária, Ruskin entendia que a corrupção da arte era o esquecimento das pessoas: tanto de quem consome quanto de quem produz. A separação ocorrida entre artista e artesão feria ambas as partes e resultava no afunilamento de seu apelo, além do empobrecimento dos objetos não-artísticos de uso comum. Nesta nota se insere o trabalho de design do artista Rafael Sanches, cuja pesquisa se direciona, entre outros desdobramentos, no sentido da utilidade social do empreendimento artístico. Ao direcionar sua exploração ao objeto de uso, o artista ganha a possibilidade de universalizar a arte e enobrecer o próprio trabalho, de acordo com o princípio ruskiniano de que a arte potente enobrece as pessoas, não no sentido da nobreza, mas sim de sua dignificação.
Os efeitos perversos da divisão do trabalho não se limitam à ferida do produto e daquele que o produz: “não é o trabalho que se divide, mas sim o homem,
3 John Ruskin. The Stones of Venice. 3 volumes – 1859-53
que se torna um apanhado de segmentos e migalhas desconexas de vida”.4 Também pela perspectiva do trabalho via artes aplicadas se situa a obra de Laura Falzoni, que acrescenta ao ofício do design e das linguagens técnicas de captação e impressão de imagem a organicidade de seu registro manual. Os enfrentamentos de ambos os artistas colocam em cheque o anacrônico problema do design e das artes decorativas, que como campos criativos superam aqui o seu estatuto inferior, em função da prédica de utilidade, e passam a ganhar terreno dentro do escopo das grandes artes cristalizadas como eruditas.
O discurso tecnicista ou tecnocrático de utilidade se coloca como obsoleto dentro das proposições poéticas dos artistas deste conjunto. Nesse sentido, a obra fotográfica de Roncca revela a ambiguidade de função de uma imagem fotográfica, que é, por excelência, uma imagem técnica com função determinada. Aquilo que à primeira vista poderia ser interpretado como fotografia documental ou de retrato ganha dimensões de universalidade sob a ótica de Victor Ronccaly, que encontra em seus exames de diversos entornos uma série de índices da força humana inerente ao trabalho artesanal e popular. Através do registro de práticas religiosas e manuais circunscritas ao campo das tradições populares, o artista lança luz sobre o vigor e importância dos conhecimentos espontâneos próprios das manifestações expressivas desse caráter. A ideia de transcendência do peso histórico das tradições locais em alinhamento com sua valorização e resguardo é essencial para o pensamento crítico do contemporâneo, e na obra fotográfica de Roncca são as vivências do espaço e experiências com o entorno que operam como a própria elaboração teórica do trabalho. Sua fotografia produz conhecimento sobre esses contextos em particular, onde prática e saberes inter-geracionais ainda se manifestam simultânea e indistintamente.
O campo do fazer artístico é território privilegiado para o exercício de superação social da divisão entre trabalho intelectual e manual. A elaboração de R. Mandolfo sumariza com transparência essa necessidade: “[se faz necessária a] Superação dialética daquilo que foi a base da emancipação humana e de sua alienação: a antiga distinção entre dois tipos de vida humana – o homo faber e o homo sapiens -, orientados, o primeiro, para a criação prática da técnica produtiva e o
4 John Ruskin. The Seven Lamps of Architecture. 1849
segundo para a reflexão contemplativa e a ciência pura; ou seja, um vinculado ao uso da mão e o outro ao uso da inteligência”.5 Seria impossível pensar, por exemplo, na obra de Bros sob essa lógica de fracionamento. Mario aborda a construção de seu universo poético a partir de uma prática que engloba sua experiência com arte-educação e tatuagem, ambas atividades que remontam ao papel ancestral do xamã e da invocação ritualística. Essa prática, solidamente vinculada à uma função social bem delimitada, encontra vazão através da manualidade do desenho da tatuagem e da aplicação pictórica de seus conhecimentos em pintura sobre tela. Nestas imagens, a complexa trajetória de papeis e referências que permeiam a obra revela a necessidade de uma recomposição unitária: um indivíduo artista-xamã uno, que além de educador é artista-tatuador, e por essa via imprime as marcas que explicitam a fatura manual/espiritual de sua obra.
Ainda que historicamente autorizados a realizar uma exploração da forma que poderia culminar na prática da art pour l'art ou na funcionalidade pura, é perceptível no presente conjunto tanto a reafirmação de certos tipos de conhecimento - dos campos técnico/processual e poético/expressivo -, quanto no desejo de elaboração de novos instrumentos de observação da realidade. Busca-se, na exposição, a reafirmação do conhecimento que se dá através da experiência sensível. E esse mesmo vínculo estável da arte com a produção de saberes é um fenômeno relativamente recente na história da filosofia: é apenas em Merleau-Ponty que encontramos um bom acordo entre as artes e as ciências, na primeira elaboração sólida acerca da junção do fazer artístico com a produção de conhecimentos, presente em sua Fenomenologia da Percepção 6. O objeto artístico era, até então, produto afirmativo de um conhecimento a ele pré-existente, incapaz de instituir um saber alheio aos conhecimentos já estabelecidos no território científico. Para Merleau-Ponty, a prática artística pode estabelecer a educação pelos sentidos, que pela primeira vez alcançam o estatuto de instrumentos confiáveis na produção do saber.
A abolição do juízo qualitativo entre saber construtivo e projeto conceitual também ganha força na obra tridimensional de H4wnee. Seu trabalho, que aglutina em superfícies portáteis um volume inversamente
5 Rodolfo Mondolfo. Verum Factum. Desde antes de Vico hasta Marx. Buenos Aires, Siglo XXI, 1971, p. 9. 6 Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, 1945
proporcional de acúmulos histórico-teóricos, se constitui, entre uma miríade de técnicas, de uma fluência virtuosa na prática tradicional da moldagem. Nele é possível observar com clareza a possibilidade de um elogio da máquina que não subestima o valor da vida humana. A união da prática artística manual com indícios das recentes revoluções tecnológicas encontra sua epítome nas figuras mitológicas de H4wnee, que carregam consigo, e em igual medida, o escárnio pela desumanização maquínica do mundo e o latente desejo pela recuperação da experiência religiosa solene e transcendente no contemporâneo.
A reflexão não é um privilégio da consciência. O corpo sofre do visto, do tocado e do movido. A necessidade de recuperação da unidade entre os binômios arte/trabalho, homo faber/homo sapiens, utilidade/contemplação, arte popular (artesanato)/arte erudita (belas artes) é também a necessidade de criação de interseções mais compreensivas no amplo campo do conhecimento e da expressão humana. Ao salientarem o caráter reflexivo do corpo e das mãos, os artistas aqui reunidos, cada um à sua maneira e com diversos pontos em comum, encaram com veemência a intricada tarefa de produção de sentido para uma realidade cada vez mais complexa. A superação dessas dicotomias ganha fôlego quando uma produção artística interdisciplinar dessa natureza encontra abrigo em um espaço como o da Nós Galeria, jovem ambiente de trocas e de valorização da diversidade. Este encontro age no sentido da conservação dos saberes humanos numa unidade superior, talvez a unidade da arte em si, que pode encontrar finalmente paz em sua renovada função de síntese superadora.
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ABELSON, P. As sete artes liberais: um estudo sobre cultura medieval. Kírion: Campinas, 2019 CHAUI, M. Experiencia do pensamento. São Paulo: Martins Fontes, 2002
COGGIOLA, O. Ciências Humanas: O que são, para que servem. Intelligere, [S. l.], n. 9, p. 14- 38, 2020. DOI: 10.11606/issn.2447-9020.intelligere.2020.173539. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revistaintelligere/article/view/173539. Acesso em: 4 out. 2020.
FERRO, S. Artes plásticas e trabalho livre. Rio de Janeiro: Editora 34, 2015
TRIGGS, O. L. The arts and crafts movement. Parkstone Press International: NY, 2009
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