A ausência é um estar em mim

Curadoria: Mariana Coggiola e Claudinei Roberto

abertura: 14/06/2016

A invenção da ausência

O polifacetado artista realiza mais uma vez um prodígio notável: ele registra uma ausência e paradoxalmente faz do registro uma presença fazendo assim coro ao poeta que em algum lugar um dia indagou: – que seria de nós se não fossem as coisas que não existem? E ainda Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava ignorante, a falta. Hoje não lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. ¹

Os artifícios de que lança mão o artista implicam no uso de um aparato que exige uma oficina, oficina que abriga a arqueologia do presente, manufatura de ausência e silêncio, mas não de falta e mutismo, coisas que o artista demonstra serem afinal diferentes. Perceba que os planos e perspectivas criadas por ele são artifícios, nunca truques, que ali não se pretende iludir. O sentimento transmutado em fato concreto, forjado à tinta, pode ter ares de miragem, condição impalpável e fugidia, imanente e por tudo isso, ou apesar disso, tangível… E nem todo mal que assola a carne é denunciado pela dor. E, no entanto, ele esta presente, corroendo, carcomendo, minando. Daí que através da poesia, grau supremo da verdade, cria-se um anteparo a morte inexorável e inexata. Se através de uma operação poética, neste caso validada pelo uso virtuoso das tintas, e digo tintas, não cores, o pintor materializa ausências, fica a sugestão de que a morte, ou a falência da vida, não pode mais ser enrustida. Ora a tinta e o linho a madeira, os óleos e os vernizes e resinas, a cera, o barro e o ouro, as gotas de sangue e sabe-se lá de que outras excrescências são representadas na forma de ossos, pedras, frascos e caixas de remédios, rostos às vezes inacessíveis ou ao contrário, inquiridores e ainda santas mal disfarçadas em mulheres do mundo, desvãos, enigmas constituídos em obra. O astrônomo Carl Sagan decretou que “A ausência da evidência não significa evidência da ausência”. Acredito que o conceito avaliza de maneira tangente as estratégias de que é capaz o artista no estado da arte. A física e a matemática são elas também outra forma da poesia e estão, neste caso, implicadas em parte daquilo que o pintor realiza. Cura remete a doença, livrai-nos, portanto, do mal – sede libera nos a malo. O simulacro de céu dourado que emoldura a pedra representada pelo artista constitui um fato em si mesmo: é aquilo que é e um dia não está mais presente ao espetáculo da vida, mas é de se supor, que por sua própria natureza ou por desígnio do artista esta sua realização sobreviva aquele que a criou e talvez seja este o ultimo triunfo deste homem: permanecer pela ausência que ele antes inventou. 

¹ Carlos Drummond de Andrade – Ausência, in Corpo – 1984

Claudinei Roberto

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E não devo eu, força de uma ânsia incontida, Puxar esta figura, única entre todas, para a vida? Fausto, parte II, versos 7438-7439 - Goethe 

Esta obra fala do corpo e do tempo. O conjunto de imagens cá presentes descreve a premissa desta relação. Retratos e autorretratos são instantes de corpos em passagem, pontos específicos da aparência de um sujeito dentro do ínterim das sessões de pintura. Remédios aqui também são retratos. As pedras, ossos e ferramentas descritos pelo artista na forma de pinturas, gravuras e aquarelas são ícones de humanidade – da ação do homem na matéria do mundo. O tempo é uma convenção humana e transforma tanto a pedra quanto o homem. Age sobre a matéria assim como o artista, embora talvez em direção oposta: enquanto o tempo desgasta e revela as ossaturas ancestrais, Mauricio trabalha pela permanência e sobrevida do objeto. Ao trazer estas figuras, únicas entre todas, para a vida, o artista retém e preserva no mundo seus assuntos. A sensibilidade é uma realização humana. Jorge Luis Borges dizia que a beleza é uma coisa física, um estado do corpo – algo que se percebe através de seu efeito carnal. E nós sentimos a dor mas não sentimos sua ausência: não sentimos falta de dor e sentimos a beleza. O corpo do artista, amalgamado com os corpos dos retratados, é a experiência da humanidade – a permanência de mim pelo eu que deposito no outro. Na obra de Mauricio Parra a vontade encontra um meio, seus meios são sua composição e prática. As técnicas por ele eleitas são em si mesmas índices do ímpeto de persistência da matéria. Em suas evocações daquilo que passa e se dissipa, o artista se prolonga no detalhamento do seu percurso. O próprio tempo da pintura a óleo é um tempo de combate: demanda do artista devoção, prolongados silêncios e grandes intervalos de solidão no atelier – um corpo só. É perceptível que esta obra parte de um espírito reverente que procura algo de sagrado em tempos de mundanidade e impermanência. O homem não é livre por possuir um corpo. A perspectiva de falência do corpo do artista sugere aqui um caminho de emancipação. As imagens de Mauricio são seus pontos de contato consigo, o inventário de sua estância, sua memória envernizada. A consciência da finitude é pulsão de vida. De costas, o artista nos recorda de que é possível sair, de que a finalidade do caminho é o percurso. Lembra-nos de que só um exílio nos conduz ao lugar da ligação crucial consigo, de que neste percurso nos aguardam as belezas e a ausência, de que uma ausência vigorosa é uma presença suprema. 

Mariana Coggiola

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fotos: marton estúdio